Parceiro de Antonio Cicero, Arthur Nogueira indica dez canções para conhecer mais a obra musical do poeta
23/12/2024
Hoje faz dois meses que o letrista carioca de escrita moderna se retirou de cena em ação que gerou uma das grandes perdas da música brasileira em 2024. Arthur Nogueira foi o último parceiro de Antonio Cicero (1945 – 2024), uma das grandes perdas da música brasileira neste ano de 2024
Daryan Dornelles / Divulgação
♫ MEMÓRIA
♪ Faz hoje dois meses que Antonio Cicero Correia Lima (6 de outubro de 1945 – 23 de outubro de 2024) se retirou de cena em ação voluntária que – com perdão do clichê, justificável porque real – deixou mais pobre o meio literário e a música brasileira.
Letrista de fino trato com as palavras, Antonio Cicero foi poeta imortalizado sobretudo pela escrita moderna de versos que deram acabamento progressista ao cancioneiro de Marina Lima, a irmã responsável por inserir a poesia de Cicero no universo da música pop a partir de 1976.
Contudo, a obra musical de Antonio Cicero extrapola a parceria com Marina Lima, incluindo letras escritas para melodias de Adriana Calcanhotto, João Bosco, Caetano Veloso (Quase, pouco conhecida canção lançada em 1997 em disco de Daúde), Claudio Zoli, Lulu Santos e Guilherme Arantes. E Arthur Nogueira.
Para lembrar os dois meses da morte de Cicero, o colunista e crítico musical do g1 convidou o compositor e também poeta Arthur Nogueira para indicar e comentar dez músicas com a intenção de ajudar a quem quer se aprofundar na poética musical de Antonio Cicero, geralmente lembrado nas redes sociais (de forma redutora) somente pelas músicas Fullgás (1984, com Marina Lima) e O último romântico (1984, com Lulu Santos e Sérgio Souza).
Paraense, Arthur Nogueira foi o último parceiro de Antonio Cicero e, exímio conhecedor da obra musical do poeta carioca, lançou em 2016 um álbum com músicas de Cicero, Presente (2016), idealizado para celebrar os 70 anos festejados por Cicero em 2015.
Arthur Nogueira tinha 16 anos quando conheceu Antonio Cicero em Belém (PA). Na ocasião, o jovem artista pediu a Cicero que autografasse um livro com poemas escritos por Nogueira. Algum tempo depois, Nogueira compôs uma canção a partir de versos do soneto Onda, apresentado por Cicero no referencial livro Guardar (1996). Onda, a canção, chegou ao disco em 2016, 20 anos depois do livro, no já mencionado álbum comemorativo dos 70 anos de Cicero.
Quando o álbum Presente foi lançado, Arthur Nogueira e Antonio Cicero já tinham se tornado amigos e a parceria dos poetas havia se ampliado e rendido o sucesso Sem medo nem esperança (2015), composto para Gal Costa (1945 – 2022) e lançado pela cantora como o grande destaque do álbum Estratosférica (2015).
A propósito, o rock Sem medo nem esperança é uma dez músicas eleitas por Arthur Nogueira para nortear leitores e ouvintes que quiserem conhecer mais a fundo a poesia pop do imortal Antonio Cicero, uma das grandes perdas da música brasileira em 2024.
Arthur Nogueira e Antonio Cicero tinham a música, a poesia e o afeto como elos de parceria que gerou amizade
Daryan Dornelles / Divulgação
♪ Eis as dez letras de Antonio Cicero indicadas por Arthur Nogueira:
1. Olhos felizes (com Marina Lima, 1980)
“Eu gosto de olhar o mundo / Não ligo pro que dizem / Meus olhos são felizes.” Essa estrofe tem tudo a ver com Cicero, com seu temperamento e a consciência de que a vida urge, oferecendo inúmeras possibilidades de ser feliz. Uma vez, ele me contou que o original era “gente bonita é um tesão”, mas o verso foi modificado devido a problemas com a censura.
2. Maresia (com Paulo Machado, 1981)
Meu amigo Pedro Cassel, poeta e compositor gaúcho, postou que Maresia é, para ele, uma das mais belas letras já escritas no Brasil: “refinada, de dar inveja a qualquer beletrista, e popular, a ponto de tocar nas rádios do país inteiro”. Eu entendo o que ele quis dizer. Cicero sabia ser simples sem simplificações: eis onde sempre residiu, para mim, o mistério e o encanto de sua obra singular.
3. Virgem (com Marina Lima, 1987)
Cicero afirmava que essa era sua canção favorita. Ele gostava da melodia, do resultado da letra e contava que, antes de saber que se tratava de uma referência ao (poeta) Carlos Drummond de Andrade, ouviu seu pai se referir a ele e ao irmão Beto, que brincavam na praia, como “os inocentes do Leblon”.
4. Granito (com João Bosco, 1991)
Cicero falava com orgulho do álbum Zona de fronteira (lançado por João Bosco em 1991) e contava boas histórias do processo de escrita das letras, em parceria com seu grande amigo, o poeta Waly Salomão. Escolho Granito porque é uma letra divina, mas tenho a impressão de que pouca gente prestou atenção nela. É a única desse álbum assinada exclusivamente por Cicero.
5. Inverno (com Adriana Calcanhotto, 1994)
Essa canção me arrebatou e conectou para sempre à poesia do Cicero, quando eu era adolescente. No geral, as pessoas tratam como se fosse uma letra de rompimento, de despedida, mas, na verdade, ela fala de um primeiro encontro e da paixão que dele decorreu, do sentimento de impotência que, em situações assim, nos toma e nos faz esquecer de todas as defesas, de todos os leões, tornando uma só pessoa o centro de todo o universo.
6. O circo (com Orlando Morais, 1996)
Uma das belas parcerias de Cicero com Orlando Morais. Cicero falava de Orlando com muito carinho. Nessa letra, equilibrando-se entre o filósofo e o letrista, Cicero cita Kant em uma definição incrível da beleza: “finalidade sem fim.” O verso dos bichos, meu preferido, foi inspirado no poema The circus animals desertion, de (Willaim Blutter) Yeats: “My circus animals were all on show”.
7. Asas (com Adriana Calcanhotto, 1998)
Para mim, uma das letras mais emocionantes de Cicero, do início ao fim. Em um show que fizemos, ele contou que se inspirou em um fragmento do poeta grego Theógnis: “A ti dei asas com as quais sobre o mar infinito / Voarás sobre toda a terra facilmente” (Elegia I.235-8).
8. Três (com Marina Lima, 2006)
Considero que Três é uma das maiores canções de Marina e Cicero, de todos os tempos. Ouvi e vibrei muito, quando saiu. O poeta se veste de filósofo e usa a dialética hegeliana para falar de amor: o “um” é a tese, o “dois” é a antítese e o “três” é a síntese.
9. Sem medo nem esperança (com Arthur Nogueira, 2015)
Recebemos a encomenda de uma canção para o álbum de Gal Costa, e Cicero me pediu uma melodia para que pudesse escrever a letra. Mandei, mas, após dois meses, com o prazo estourado, ele disse que estava aflito, pois não conseguia escrever, mas sabia o quanto era importante para mim ter uma canção gravada por Gal. Eu sugeri, então, que usássemos a máxima latina “nec spe nec metu”, que aprendi com ele. Cicero sempre falava sobre isso, como um lema de vida. Pelo telefone, descobrimos que versos de poemas dele, que tinham a ver com o tema, por um doce mistério, se encaixavam perfeitamente na minha melodia. Montamos o quebra-cabeça pelo telefone, gravei a canção no celular mesmo e, naquela mesma noite, Gal ouviu e disse a Marcus Preto (produtor envolvido na criação do álbum Estratosférica) que ficou com os olhos marejados.
10. Brasileiro profundo (com Arthur Nogueira, 2022)
A última canção de Cicero, e um dos últimos poemas que ele escreveu. Em 2020, durante o isolamento social, com saudade, liguei para ele e pedi que fizéssemos uma canção. Desanimado com as notícias do Brasil, ele me disse que, infelizmente, não se sentia capaz de escrever naquele momento. Tentei animá-lo, mas não consegui. Fiquei desapontado, e ele percebeu. No dia seguinte, abri meu e-mail e lá estava Brasileiro profundo, com a seguinte mensagem: “Querido Arthur, ontem acabei escrevendo.”